24 de
agosto de 2014
Estudo sugere: doença
ainda inexplicada, que destrói rins e já matou milhares de agricultores, pode
estar relacionada ao glifosato , herbicida-líder da
transnacional de transgênicos Monsanto.
O
herbicida Roundup , da
Monsanto, foi vinculado à epidemia de uma misteriosa doença renal fatal que
apareceu na América Central, no Sri Lanka e na Índia.
Há anos,
os cientistas vêm tentando desvendar o mistério de uma epidemia de doença renal
crônica que atingiu a América Central, a Índia e o Sri Lanka. A doença ocorre
em agricultores pobres que realizam trabalho braçal pesado em climas quentes.
Em todas as ocasiões, os trabalhadores tinham sido expostos a herbicidas e
metais pesados. A doença é conhecida como CKDu (Doença Renal Crônica de
etiologia desconhecida). O “u” (de “unknown”, desconhecido) diferencia essa
enfermidade de outras doenças renais crônicas cuja causa é conhecida. Poucos
profissionais médicos estão cientes da CKDu, apesar das terríveis perdas
impostas à saúde dos agricultores pobres, de El Salvador até o sul da Ásia.
Catharina
Wesseling, diretora regional do Programa Saúde, Trabalho e Ambiente (Saltra) na
América Central, pioneiro nos estudos iniciais sobre o surto ainda não esclarecido na região ,
diz o seguinte: “Os nefrologistas e os profissionais da saúde pública dos
países ricos não estão familiarizados com o problema ou duvidam inclusive que
ele exista”.
Wesseling
está sendo diplomática. Na cúpula da saúde de 2011, na cidade do México, os EUA
rechaçaram uma proposta dos países da América Central que teria listado a CKDu
como uma das prioridades para as Américas.
David
McQueen, um delegado norte-americano do Centro de Controle e Prevenção de
Doenças (CDC), dos Estados Unidos, que posteriormente se desligou dessa
agência, explicou a posição de seu país. “A ideia era manter o foco nos fatores
de risco chave que poderíamos controlar e nas grandes causas de morte: doença
cardíaca, câncer e diabetes. E sentíamos que a posição que assumimos incluía a
CKD”.
Os
norte-americanos estavam errados. Os delegados da América Central estavam
certos. A CKDu é um novo tipo de doença. Essa afecção dos rins não resulta da
diabetes, da hipertensão ou de outros fatores de risco relacionados com a
dieta. Diferentemente do que acontece na doença renal ligada à diabetes ou à
hipertensão, muitos dos danos da CKDu ocorrem nos túbulos renais, o que sugere
uma etiologia tóxica.
Hoje, a CKDu é a segunda maior causa de
mortalidade entre os homens em El Salvador. Esse pequeno e densamente povoado
país da América Central tem atualmente a maior taxa de mortalidade por doença
renal no mundo. Os vizinhos Honduras e Nicarágua também têm taxas extremamente
altas de mortalidade por doença renal. Em El Salvador e Nicarágua, mais homens
estão morrendo por CKDu do que por HIV/Aids, diabetes e leucemia juntas. Numa
região rural da Nicarágua, tantos homens morreram que a comunidade é chamada “A
Ilha das Viúvas“.
Além da
América Central, a Índia e o Sri Lanka foram duramente atingidos pela epidemia.
No Sri Lanka, mais de 20 mil pessoas morreram
por CKDu nas últimas duas décadas. No
estado indiano de Andhra Pradesh, mais de 1.500 pessoas receberam tratamento
para a doença desde 2007. Como a diálise e o transplante de rim são raros
nessas regiões, a maioria dos que sofrem de CKDu irão morrer da doença renal.
Numa
investigação digna do grande Sherlock Holmes, um cientista-detetive do Sri
Lanka, dr. Channa Jayasumana, e seus dois colegas, dr. Sarath Gunatilake e dr.
Priyantha Senanayake, lançaram uma hipótese unificadora que poderia explicar a
origem da doença. Eles argumentaram que o agente agressor deve ter sido
introduzido no Sri Lanka nos últimos trinta anos, uma vez que os primeiros
casos apareceram em meados da década de 1990. Essa substância química também
devia ser capaz de, em água dura, formar complexos estáveis com os metais e
agir como um escudo, impedindo que esses metais sejam metabolizados no fígado.
O composto também precisaria agir como um mensageiro, levando os metais até o
rim.
Sabemos
que as mudanças políticas no Sri Lanka no final dos anos 1970 levaram à
introdução dos agroquímicos, principalmente no cultivo do arroz. Os
pesquisadores procuraram os prováveis suspeitos. Tudo apontava para o glifosato , um herbicida amplamente
utilizado no Sri Lanka. Estudos anteriores tinham mostrado que o glifosato
liga-se aos metais e o complexo glifosato-metal pode durar por décadas no solo.
O
glifosato não foi originalmente criado para ser usado como herbicida.
Patenteado pela Stauffer Chemical Company em 1964, foi introduzido como um
agente quelante, porque se liga aos metais com avidez. O glifosato foi usado
primeiramente na remoção de depósitos minerais da tubulação das caldeiras e de
outros sistemas de água quente.
É essa
propriedade quelante que permite que o glifosato forme complexos com o arsênio,
o cádmio e outros metais pesados encontrados nas águas subterrâneas e no solo
na América Central, na Índia e no Sri Lanka. O complexo glifosato-metal pesado
pode entrar no corpo humano de diversas maneiras: pode ser ingerido, inalado ou
absorvido através da pele. O glifosato age como um cavalo de
Troia, permitindo que o metal pesado a ele ligado evite a detecção pelo fígado,
uma vez que ele ocupa os locais de ligação que o fígado normalmente obteria. O
complexo glifosato-metal pesado chega aos túbulos renais, onde a alta acidez
permite que o metal se separe do glifosato. O cádmio ou o arsênio causam então
danos aos túbulos renais e a outras partes dos rins, o que ao final resulta em
falência renal e, com frequência, em morte.
Por
enquanto, a elegante teoria proposta pelo dr. Jayasumana e seus colegas pode
apenas ser considerada geradora de hipóteses. Outros estudos científicos serão
necessários para confirmar a hipótese de que a CKDu realmente se deve à
toxicidade do glifosato-metal pesado para os túbulos renais. Até agora, esta
parece ser a melhor explicação para a epidemia.
Outra
explicação é a de que o estresse por calor pode ser a causa, ou a combinação
entre estresse por calor e toxicidade química. A Monsanto, claro, tem defendido
o glifosato e contestado a afirmação de que ele tenha qualquer coisa a ver com
a origem da CKDu.
Ainda que
não exista uma prova conclusiva a respeito da causa exata da CKDu , tanto o Sri Lanka quanto El
Salvador invocaram o princípio da precaução. El Salvador baniu o glifosato em
setembro de 2013 e atualmente está procurando alternativas mais seguras. O Sri
Lanka baniu o glifosato em março deste ano por causa de preocupações a respeito
da CKDu.
O
glifosato tem uma história interessante. Depois de seu uso inicial como agente
descamador pela Stauffer Chemical, os cientistas da Monsanto descobriram suas
qualidades herbicidas. A Monsanto patenteou o glifosato como herbicida na
década de 1970 e tem usado a marca “Roundup ” desde 1974. A empresa
manteve os direitos exclusivos até o ano 2000, quando a patente expirou. Em
2005, os produtos com glifosato da Monsanto estavam
registrados em mais de 130 países para uso em mais de cem tipos de cultivo. Em
2013, o glifosato era o herbicida com maior volume de vendas no mundo.
A
popularidade o glifosato se deve, em parte, à percepção de que é extremamente
seguro. O site da Monsanto afirma:
O
glifosato se liga fortemente à maioria dos tipos de solo e por isso não permanece
disponível para absorção pelas raízes das plantas próximas. Funciona pela
perturbação de uma enzima vegetal envolvida na produção de aminoácidos que são
essenciais para o crescimento da planta. A enzima, EPSP sintase, não está
presente em pessoas ou animais, representando baixo risco para a saúde humana
nos casos em que o glifosato é usado de acordo com as instruções do rótulo.
Por causa
da reputação do glifosato em termos de segurança e de
efetividade, John Franz, que descobriu a sua utilidade como um herbicida,
recebeu a Medalha Nacional de Tecnologia em 1987. Franz também recebeu o Prêmio
Carothers da Sociedade Americana de Química em 1989, e a Medalha Perkins da
Seção Americana da Sociedade da Indústria Química em 1990. Em 2007, foi aceito
no Hall da Fama dos Inventores dos EUA pelo seu trabalho com o herbicida. O
Roundup foi nomeado um dos “Dez Produtos que Mudaram a Cara da Agricultura“
pela revista Farm Chemicals, em 1994.
Nem todo
mundo concorda com essa percepção a respeito da segurança do glifosato. A
primeira cultura de transgênicos (Organismo Geneticamente Modificado - OGM)
resistente ao Roundup (soja)
foi lançada pela Monsanto em 1996. Nesse mesmo ano, começaram a aparecer as
primeiras ervas daninhas resistentes ao glifosato. Os fazendeiros responderam
usando herbicidas cada vez mais tóxicos para lidar com as novas superpragas que
haviam desenvolvido resistência ao glifosato.
Além da
preocupação a respeito da emergência das superpragas, um estudo com ratos
demonstrou que baixos níveis de glifosato induzem perturbações
hormonal-dependentes graves nas mamas, no fígado e nos rins. Recentemente, dois
grupos de ativistas, Moms Across America (Mães em toda a América) e Thinking
Moms Revolution (Revolução das Mães Pensantes), pediram à Agência Americana de
Proteção Ambiental (EPA) para pedir um recall do Roundup, citando um grande
número de impactos adversos sobre a saúde das crianças, incluindo déficit de
crescimento, síndrome do intestino solto, autismo e alergias alimentares.
O
glifosato não é um produto comum. Além de ser um dos herbicidas mais usados no
mundo, é também o pilar central do templo da Monsanto. A maior parte das
sementes da empresa, incluindo soja, milho, canola, alfafa, algodão, beterraba
e sorgo, são resistentes ao glifosato. Em 2009, os produtos da linha Roundup (glifosato), incluindo as
sementes geneticamente modificadas, representavam cerca de metade da receita
anual da Monsanto. Essa dependência em relação aos produtos com glifosato torna a Monsanto
extremamente vulnerável à pesquisa que questiona a segurança do herbicida.
As
sementes resistentes ao glifosato são desenhadas para permitir que o agricultor
sature os seus campos com o herbicida para matar todas as ervas daninhas. A
safra resistente ao glifosato pode então ser colhida. Mas se a combinação do
glifosato com os metais pesados encontrados na água subterrânea ou no solo
destroi os rins do agricultor no processo, o castelo de cartas desmorona. É
isso que pode estar acontecendo agora.
Um
confronto sério está tomando corpo em El Salvador. O governo norte-americano
tem pressionado El Salvador para que compre sementes geneticamente modificadas
da Monsanto ao invés de sementes nativas dos seus próprios produtores. Os EUA
têm ameaçado não liberar quase US$ 300 milhões em empréstimos caso El Salvador
não compre as sementes da Monsanto. As sementes geneticamente modificadas são
mais caras e não foram adaptadas para o clima ou para o solo salvadorenho.
A única
“vantagem” das sementes transgênicas da Monsanto é a sua resistência ao
glifosato. Agora que ele se mostrou uma possível, e talvez provável, causa de CKDu , essa “vantagem” já não existe.
Qual a
mensagem dos EUA para El Salvador, exatamente? Talvez a hipótese mais favorável
seja a de que os EUA não têm ciência de que o glifosato pode ser a causa da
epidemia de doença renal fatal em El Salvador e que o governo sinceramente
acredita que as sementes transgênicas
(OGM- organismo geneticamente modificados) vão proporcionar um rendimento
melhor. Se for assim, uma mistura de ignorância e arrogância está no coração
desse tropeço na política externa norte-americana. Uma explicação menos
amigável poderia sugerir que o governo coloca os lucros da Monsanto acima das
preocupações acerca da economia, do meio ambiente e da saúde dos salvadorenhos.
Essa visão poderia sugerir que uma mistura trágica de ganância, descaso e
insensibilidade para com os salvadorenhos está por trás da política americana.
Infelizmente,
existem evidências que corroboram a segunda visão. Os EUA parecem apoiar
incondicionalmente a Monsanto, ignorando qualquer questionamento a respeito da
segurança dos seus produtos. Telegramas divulgados pelo WikiLeaks mostram que
diplomatas norte-americanos ao redor do mundo estão promovendo as culturas
transgênicas (OGM) como um impertativo estratégico governamental e comercial.
Os telegramas também revelam instruções no sentido de punir quaisquer países estrangeiros
que tentem banir as culturas transgênicas (OGM).
Qualquer
que seja a explicação, pressionar El Salvador, ou qualquer país, para que
compre sementes OGM da Monsanto é um erro trágico. Não é uma política externa
digna dos EUA. Vamos mudar isso. Vamos basear nossa política externa, assim
como a doméstica, nos direitos humanos, na vanguarda ambiental, na saúde e na
equidade.
Pós-escrito:
Depois que vários artigos a respeito da questão
das sementes apareceram na mídia, o The New York Times informou
que os EUA reverteram sua posição e devem parar de pressionar El Salvador para
que compre as sementes da Monsanto. Até agora, os empréstimos ainda não foram
liberados.
O vídeo
abaixo (em inglês apenas) relata a doença misteriosa:
Por Jeff Ritterman, no Truthout | Tradução Maria Cristina Itokazu
Participe
da discussão no Fórum Notícias Naturais .
Fontes:
- Outras Palavras: O mais novo fantasma da Monsanto
- Monsanto’s Herbicide Linked to Fatal Kidney Disease Epidemic: Could It Topple the Company?
- The Guardian: WikiLeaks: US targets EU over GM crops
- Public Integrity: As kidney disease kills thousands across continents, scientists scramble for answers
- Outras Palavras: O mais novo fantasma da Monsanto
- Monsanto’s Herbicide Linked to Fatal Kidney Disease Epidemic: Could It Topple the Company?
- The Guardian: WikiLeaks: US targets EU over GM crops
- Public Integrity: As kidney disease kills thousands across continents, scientists scramble for answers
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